As imagens chocam. São três minutos de violência em que quatro homens agridem até a morte o padeiro Valmir Herculano, de 37 anos, no dia 21 de agosto, no bairro do Benedito Bentes, em Maceió.O padeiro tenta, a todo custo, esquivar-se das agressões, enquanto segura a própria bicicleta, usada para ir ao trabalho. Enquanto Valmir é agredido, carros passam pela via, ninguém o ajuda, e ele tenta, inclusive, entrar em um táxi para se socorrer, mas não consegue.
Em seguida, dois dos quatro homens que o espancavam, aproximam-se, um com uma pá e o outro com pedras, e o atacam. Minutos depois, um terceiro também se aproxima e dá chutes no padeiro. Mesmo diante de tantas tentativas para se salvar, ele não aguenta e é levado praticamente morto ao HGE, onde, de fato, morre no mesmo dia.
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A descrição que abre esta reportagem é considerada pela Polícia Civil como o que se chama de linchamento – uma espécie de justiçamento, em que a população usa as próprias mãos para fazer “justiça”. O que é um equívoco, segundo operadores do direito, porque, embora o sentimento de impunidade esteja presente na sociedade, somente o Estado pode punir, nos termos da lei, e depois de devidamente julgado, aquele que é condenado por um algum crime.
Somente este ano, a Ordem dos Advogados do Brasil seccional Alagoas (OAB-AL) detectou 48 casos de linchamentos em Alagoas, sendo que, deste número, 10 resultaram em morte. Há subnotificação, segundo a Comissão de Direitos Humanos da OAB, que baseia os dados em fatos noticiados pelos jornais.
A história de Valmir é clássica em casos de linchamento. De acordo com o delegado Rodrigo Sarmento, que investiga o caso, não há evidência alguma de que Valmir tenha cometido qualquer tipo de crime.
Segundo a autoridade policial, pelo menos três, dos quatro que o agrediram, assim o fizeram por achar que ele era ladrão. Em depoimentos, um deles afirmou ter escutado alguém gritar que Valmir era ladrão.
De acordo com Sarmento, o padeiro tinha se desentendido no sábado, 20 de agosto, em uma festa, com um dos seus agressores: um homem que aparece vestido de branco nas imagens. Ele foi identificado como Felipe Martins. Na madrugada de domingo, após a festa, Valmir ligou para o chefe para informar que iria ao trabalho.
“Quando ele estava chegando no trabalho na bicicleta dele, com o celular dele, houve aquela agressão. Felipe Martins começou a agredi-lo e a dizer para outras pessoas que ele era um ladrão”. Por causa disso, conforme investigação policial, outras três pessoas se aproximaram e também o agrediram.
Felipe Martins foi preso, junto com mais um suspeito do espancamento. Aos policiais militares, ele disse que a vítima tinha tentado roubar o celular dele. Já em depoimento, ao ser autuado em flagrante pela Polícia Civil, ele mudou a versão. Segundo o delegado Rodrigo Sarmento, ele disse que uma mulher o havia procurado dizendo que tinha sido roubada pelo padeiro.
“E essa mulher nunca apareceu, o celular dela nunca apareceu. O celular que foi apreendido e a bicicleta eram da própria vítima”, afirmou o delegado.
Outras duas pessoas foram presas depois, quando identificadas pelas imagens. Elas foram denunciadas por meio do 181. Os dois últimos presos prestaram depoimento e um deles confessou ter espancado o padeiro porque ouviu alguém gritar que ele era ladrão.
“Um dos agressores disse que ouviu quando as pessoas disseram “pega ladrão”. E ele não sabia quem era o padeiro, nunca tinha visto na vida, achou que era um ladrão, foi lá e participou do linchamento. Ele confessa isso claramente”, informa Rodrigo Sarmento, delegado do caso.
Ele acrescenta que não há justificativas e evidências de que Valmir cometeu roubo. “Não se justifica que o padeiro tenha tentado roubar alguém porque ele estava indo para o trabalho dele. O patrão foi ouvido e disse que ele recebia R$ 2 mil por mês. Uma pessoa dessa ia estar roubando ninguém no meio da rua e bem próximo do trabalho dele?”, questiona o delegado.
Na Justiça brasileira, até que uma pessoa seja condenada a pagar por um crime – sendo a prisão a punição mais severa -, é preciso que diversas etapas sejam cumpridas. Desde a investigação policial, passando para a denúncia, até o julgamento. É ao longo desse caminho, que há o colhimento de provas documentais, biológicas, testemunhais. Momento também em que o próprio acusado tem a oportunidade de ser ouvido e de apresentar a sua defesa.
Ainda no meio desse caminho, é comum que quem era acusado seja inocentado, pois novas provas colhidas tiram a pessoa da cena do crime. Somente no mês de agosto, a Defensoria Pública de Alagoas, por meio de um dos seus três defensores criminais – Eraldo Silveira – absolveu 11 pessoas ao longo dos processos. E isso só é possível porque há o que chamam de “devido processo legal”. O que não é oportunizado nos linchamentos.
“A gente percebe, num primeiro momento, de que a ideia de impunidade permanece. É uma legitimação do discurso de que a pessoa pode linchar outra por uma suposta legítima defesa. Ainda falta uma política pública para impedir que seja difundida essa ideia de que linchar é um ato benéfico à sociedade. Não é, de fato. Na verdade, o linchamento gera mais violência e de forma descontrolada, além de deslegitimar o Estado de sua atuação, que é quem detém o poder de punir. Se as pessoas começam a matar umas as outras, a gente entra na barbárie”, expõe o advogado criminalista Ronaldo Cardoso, que também é membro da Comissão de Defesa do Direitos Humanos e do Comitê Estadual de Combate e Prevenção à Tortura da OAB-AL.
Ele lembra um dos casos acompanhados pela Ordem. Uma família buscou a OAB para receber apoio, já que dois parentes foram severamente vitimados por um linchamento por serem confundidos com assaltantes. Um morreu. O outro ficou em estado vegetativo.
Para o criminalista, mesmo que a vítima de um linchamento tenha, de fato, cometido um crime, a Justiça com as próprias mãos não é o caminho adequado. “Foram dez vidas ceifadas sem sequer ter certeza que essas pessoas cometeram crime, e mesmo que tivessem cometido, não é a forma adequada de se resolver. Isso se fica na antiguidade, quando se existia o que se chama de vingança privada. Na verdade, o linchamento é o retorno a essa resolução de conflito lastreada na vingança privada”, afirma.
“A gente tem trabalhado para cobrar das autoridades que iniciem as investigações para entender qual foi a dinâmica do fato. Entender quem merece ser punido. A pessoa que comete linchamento também comete um crime. Então é dever das autoridades de investigar e denunciar essas pessoas pelos crimes cometidos, mesmo que a pretexto de uma suposta defesa da sociedade”, finaliza.