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HOME > blogs > LETRAS DE ALAGOAS
Imagem ilustrativa da imagem DURANTE UM VOO DA TAP  Salvador/Lisboa, março de 2010

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Letras de Alagoas

DURANTE UM VOO DA TAP Salvador/Lisboa, março de 2010

Uma aeromoça havia passado no corredor, oferecendo revistas portuguesas. Outra me apresentou uma bandeja coberta por copos de suco, água e vinho branco. Graças ao programa de milhas, eu havia obtido um upgrade, permitindo-me viajar em classe executiva. Eu merecia esse conforto, pois vinha me recuperando de uma fratura na fíbula. Sentada do lado da janela, olhei o assento vazio ao meu lado. Cruzei os dedos, torcendo para ninguém se sentar.

Um pouco antes de a porta ser fechada, chegou a passageira atrasada. Assim como eu, era uma mulher de baixa estatura, na casa dos cinquenta. Enquanto guardava uma maleta no compartimento de bagagem, olhei-a de relance. Sem um pingo de maquiagem no rosto, usava um corte de cabelo “Joãozinho”, um suéter por cima de uma camisa e um par de calças jeans. Cumprimentamo-nos sobriamente.

Até o jantar, não havíamos trocado uma só palavra. Logo após apertar o cinto, a mulher mergulhara o nariz num livro de Patricia Highsmith. Fiz o mesmo, pois retomei a leitura do meu romance japonês.

No final da refeição, uma aeromoça nos ofereceu pudim de especiarias, vinho do porto e chocolates recheados. Depois disso, inclinei um pouco o encosto da poltrona, coloquei o travesseiro na nuca e espalhei o cobertor sobre as pernas. Imaginei dormir em breve, pois eu havia tomado as gotinhas que me desconectam da realidade. Só não imaginava que o aperitivo soltasse a língua da minha vizinha de assento.

Quando me virei para devolver um copo à comissária, a mulher do cabelo curto me dirigiu a palavra. A partir dali, desenrolou-se um curioso bate–papo que duraria horas. Eu soube que era italiana, nascida em Roma, e que morava em Recife há trinta anos. Chamava-se Lina. Assim como eu, a italiana havia se casado com um nordestino e abandonara o velho continente para viver nos trópicos.

Entre outras coisas, confessou ter tido um passado do tipo bicho-grilo. No final dos anos 70, mudara-se para a Índia, onde viveu, durante alguns anos, no meio de uma seita abstrusa. Além disso, fora seguidora do ilustre guru Rajneesh Chandra.

Em certa altura da conversa, comentei que eu havia fraturado a perna esquerda, cinco meses antes. Sabendo disso, Lina revelou-me que, segundo os conceitos de antigas filosofias orientais, acidentes ou doenças do lado esquerdo, na mulher, significavam atritos com um homem próximo, um homem que tivesse bastante ascendência ou poder sobre ela. Pode ser um filho, um amigo, um sogro etc.

Acrescentou também que, normalmente, esse tipo de ferimento acontece com mulheres de personalidade masculina. Achei aquilo francamente intrigante. Contei-lhe que sempre tive uma relação complicada com meu pai. O conflito surgira quando eu tinha sete anos e que alguém me havia dito que, após eu nascer, meu pai não quis olhar para mim. Machista ao extremo, não aceitava ter uma filha mulher. A partir dali, passei a adotar o comportamento rebelde de um pirralho, tornando-me uma típica “maria-rapaz”.

Se no meu quarto eu brincava de boneca, na rua eu media forças com os meninos, subia em árvores, descia ladeiras de patins ou pedalava bicicleta a toda velocidade. Sempre me arrebentava, machucava-me feio. Eu brigava com os garotos e, ocasionalmente, voltava para casa com um olho roxo ou um dente trincado. Eu incluí outra espantosa revelação: antes de completar dez anos, eu havia rachado o osso do braço esquerdo em duas ocasiões diferentes! Finalmente, ao entrar na adolescência, desabrochei mulher e aposentei meu lado moleque.

Lina declarou também que partir um osso representa, de forma simbólica, romper com o domínio de quem nos sufoca. Fiquei pasma ao lembrar que eu fraturara a perna justamente na véspera de viajar para a França, onde ia visitar, pela última vez, meu pai, gravemente doente.

De um modo afobado, eu tinha descido correndo um lance de escada mergulhado na escuridão. Pensando ter alcançado o fim, avancei a canela para pousar o pé no chão que eu acreditava ser do térreo. Infortunadamente, faltavam ainda os quatro últimos degraus, de modo que caí com todo meu peso sobre a perna esquerda, ocasionando imediatamente um rompimento na altura do tornozelo.

Na época, não atinei que minha fuga pela escadaria pudesse ser alguma atitude autodestrutiva do meu subconsciente, desejando prejudicar a derradeira reunião. O acidente me impossibilitou de rever meu pai vivo, pois fiquei inválida durante três longos meses. Consequentemente, esse impedimento representava a derradeira ruptura entre o autoritário sr. Lafaye e a minha pessoa. Analisando agora toda a sequência, percebo o quanto o acidente confirmava a revelação de Lina...

Após abaixar o assento na posição “dormir”, continuei a divulgar detalhes do meu passado à discípula de Osho. Uma parte da noite transcorreu daquela forma: a italiana no papel de terapeuta aérea, e a francesa no lugar de paciente passageira.

Enquanto desjejuava comigo em Lisboa, Lina entregou-me seu cartão de visita antes de embarcar para Roma. Ficamos de nos telefonar em breve. Infelizmente, nunca a revi, pois não sei que fim levou o papel com seus contatos. De qualquer forma, guardo uma agradável lembrança daquela romana, precisamente porque essa amizade fora efêmera. Não desandara à luz fria do ordinário cotidiano...

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