Assim que o sol se põe, os índios da aldeia Boa Vista, em Ubatuba no litoral norte paulista, vão caminhando para a casa de reza da comunidade. É hora de agradecer a Tupã, que, na crença deles, é o criador universal. O ritual é sagrado, mas há cerca de um mês ficou restrito e nem todos ali podem participar. Com a pandemia do novo coronavírus, não pode mais haver aglomerações. A rotina ali teve que ser adaptada.
Neste domingo (19), Dia do Índio, as duas aldeias passam pela data de forma diferente de anos anteriores.
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Além de costumes tradicionais, a renda dos índios também foi alterada pela Covid-19: o dinheiro chegava por meio da venda de artesanatos e de palmito. Mas sem poder receber visitas ou sair para vender, eles viram a receita praticamente zerar. Passaram, desde então, a contar com doações de amigos e da assistência social do município para ter mantimentos como arroz e feijão, além de itens de higiene pessoal.
Na aldeia Renascer, também em Ubatuba, a situação é semelhante. Os índios de lá não participaram de alguns rituais tradicionais, como o de batismo, para evitar o risco da contaminação pelo novo coronavírus. Os moradores que sobrevivem do artesanato também têm dependido de doação de cestas básicas neste período.
"Somos uma comunidade, vivemos em conjunto. Aqui tudo é muito próximo. Costumávamos sempre visitar os vizinhos. Mas isso mudou um pouco. Cada um está mais na sua casa. Estamos seguindo as recomendações de saúde", contou Alex Mimbi da Silva, mais conhecido como Alex Guarani, que trabalha como guia em visitas à aldeia Boa Vista.
Mudanças na rotina
Quando surgiram as primeiras recomendações para evitar a proliferação do novo coronavírus no Brasil, cada aldeia começou a discutir as medidas que deveriam ser tomadas. A primeira mudança foi uma determinação do Governo de São Paulo. As aulas nas escolas que ficam dentro dessas comunidades foram suspensas e as férias foram antecipadas.
Na aldeia Boa Vista, são 200 pessoas divididas em 55 famílias. Na Renascer, são 19 famílias e o total de 100 moradores. Em ambas, os idosos, que fazem parte do grupo de risco, são minoria. São dez com mais de 60 anos na Boa Vista, e apenas uma idosa na Renascer. Os indígenas desse grupo não podem sair das comunidades. Os únicos que agora podem sair da aldeia são os jovens e, ainda assim, somente quando necessário.
"Quando precisa comprar alguma coisa fora, estamos deixando uma pessoa específica. Daí ela segue todos os procedimentos de higiene, sai com máscara... Nós já vivíamos um pouco mais isolados. Mas agora estamos tomando esses cuidados. A gente ainda não sabe como o indígena reagiria a esse vírus. Vimos que começaram alguns casos em aldeias lá de Manaus", comentou um dos líderes da aldeia Renascer, Cristiano de Lima Silva Awá Kiririndju, que também é professor e coordenador pedagógico na escola da aldeia.
Algumas atividades foram suspensas, como as reuniões da liderança da aldeia Boa Vista e eventos festivos. As comunidades também costumam receber visitas de escolas e grupos interessados em conhecer a cultura indígena, principalmente no mês de abril por causa do Dia do Índio. No entanto, as visitas foram canceladas ou reagendadas para daqui alguns meses.
Na Boa Vista, há duas casas de reza, chamadas de Opy'i pelos índios da etnia Guaraní. Além do culto a Tupã, os índios se encontram no local para tomar chimarrão juntos. A bebida, quando colocada na cuia, ia passando de mão em mão. "Estamos deixando de lado. É uma bebida sagrada para nós. Dá para fazer em casa, mas é muito mais aconchegante tomar em grupo. Tivemos que cortar isso", disse Alex.
As duas aldeias não têm nem casos suspeitos de Covid-19 entre os moradores. Em ambas, há um posto médico. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) passou à aldeia a mesma recomendação que os demais órgãos de saúde, como evitar contato social e lavar as mãos com frequência.
"Não temos o costume de pegar na mão quando estamos cumprimentando. Já era mais longe mesmo. Apenas damos o bom dia, boa tarde. Não temos o costume de abraçar. Mas a higiene mudou. Hoje estamos lavando as mãos todos os dias. Fui para a cidade e, quando voltei, tive que tomar banho", afirmou Alex Guarani.
Renda
Nesse período de distanciamento social, os índios da aldeia Boa Vista continuam produzindo os artesanatos. De acordo com o guia do local, mais de 90% da comunidade trabalha com artesanato. Com sementes, produzem colares. Utilizam outros materiais para fazer peças para pesca, instrumentos musicais, além de itens de decoração. Mas desde que as recomendações sobre a Covid-19 chegaram, toda a produção tem ficado apenas no estoque.
"Como quase toda a comunidade trabalha com artesanato, implantamos o turismo de base comunitária para a venda dos artesanatos. É uma fonte de renda. Infelizmente, estamos parados com isso. As principais fontes de renda são o artesanato e o palmito. Nem na feira para vender podemos ir mais. Não estamos nos arriscando. Praticamente zerou [a renda]", relatou Alex.
Para atravessar esse período de queda de rendimentos, a aldeia tem recebido doações de cestas básicas e itens de higiene pessoal de amigos e da assistência social da Prefeitura de Ubatuba. Há plantação na aldeia, mas alguns alimentos, como arroz e feijão, são comprados fora.
Na aldeia Renascer, Cristiano afirma que são apenas alguns moradores que sobrevivem do artesanato ou da venda de palmito. Há também os funcionários da escola e do posto médico, que não tiveram a renda afetada. Esses têm ajudado os que estão passando por necessidade. "Nós temos um plano de sustentabilidade aqui, então produzimos para o nosso sustento. Mas quem está precisando, nós ajudamos. A assistente social da prefeitura conseguiu alguns cestas básicas do município para nós", contou.
As aldeias
De acordo com o Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população indígena no país é de 896 mil. São 305 etnias e 274 idiomas falados. Dos 896 mil indígenas, 36,2% vivem em área urbana e 63,8% na área rural.
Em Ubatuba, são três aldeias. Há a aldeia Boa Vista, localizada perto da Cachoeira do Prumirim, uma ampliação da Boa Vista, em Itamambuca, e a aldeia Renascer, que fica no Pico do Corcovado. Essa última ainda está em fase de estudos para ser regularizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
A aldeia Boa Vista é formada por índios da etnia Guaraní, tem pouco mais de 900 hectares e surgiu nos anos 1960, com a chegada do cacique Altino Santos. Segundo conta o guia Alex, Altino e a família vieram de Itanhaém (SP) para trabalhar em uma fazenda na área que pertencia a um japonês. Quando o dono da propriedade voltou ao Japão, ele doou parte das terras para Altino. Em 1987, a terra foi demarcada como território indígena.
A aldeia Renascer tem índios da etnia Guaraní e Guarani Mbya. Surgiu em 1999, quando foi retomada. De acordo com Cristiano de Lima Silva Awá Kiririndju, o local já foi ocupado pelo povo Tupi no passado. Depois, a terra passou a ser explorada por uma família japonesa. Após a retomada, foi feito um trabalho para restaurar toda a vegetação. Desde então, eles tentam dar andamento para a demarcação da terra pelo governo.
Em 13 de março deste ano, a Boa Vista completou 50 anos. Um ano marcante que, ao menos por enquanto, vai passar sem celebrações grandiosas com a chegada do novo coronavírus. Alex Guarani relata como os índios mais velhos da aldeia enxergam esse momento vivido pela humanidade.
"Eles explicam para nós que essa pandemia que está acontecendo é um efeito nosso mesmo. A gente perdeu totalmente o respeito à natureza, ao próximo. A gente só pensa em ganância, até alguns de nós mesmos. A ganância estraga tudo. A gente destrói tudo, polui as águas, o próprio ar... Que a gente aprenda com isso", finaliza.