Arthur Fernandes nasceu Jéssica, mas decidiu adotar o nome masculino na vida cotidiana. É assim que o rapaz, de 20 anos, fica mais à vontade no próprio corpo, se sente melhor na própria pele. A decisão foi tomada no final do ano passado e, em 2017, ele já pode fazer a matrícula na Escola Estadual Ângelo de Abreu com a designação que escolheu para si. Tudo isso graças ao nome social.
Garantido na legislação, ele é o dispositivo que permite que pessoas trans e travestis sejam chamadas cotidianamente pelo nome que preferirem, em contraste com aquele registrado na Certidão de Nascimento - e que, apesar de estar ali, não reflete a identidade de gênero. No Brasil, a Universidade Federal do Amapá foi pioneira na adoção da iniciativa. Mas ela já chegou também a Alagoas.
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E Arthur é só um exemplo disso. A unidade escolar onde ele estuda, em Olho D'água das Flores, no sertão alagoano, é uma das que seguem essa norma. Por aqui, o mesmo é regra nas redes estaduais de ensino e de saúde e ainda em universidades como a de Ciências da Saúde (Uncisal), a estadual (Uneal) e a federal (Ufal), além do Centro Universitário Tiradentes.
Em âmbito federal, foi o Decreto nº 8.727, expedido pela Presidência da República em abril de 2016, que normatizou o uso do nome social pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Estados da federação e outras instituições também têm seus decretos e determinações para garantir que tanto estudantes quanto servidores públicos e funcionários possam exercer seus direitos.
O advogado e professor de Direito Othoniel Pinheiro explica que nesses casos não é necessário um processo judicial. Com a força dos decretos, o desejo já é garantido em algumas repartições públicas e também em entidades particulares. "Ele é adotado para as pessoas que possuem uma outra identidade de gênero e se sentem constrangidas em ter o nome próprio do nascimento, então elas podem fazer uso do social".

E, quando o estabelecimento se nega a adotar o nome social, é possível recorrer ao bom senso da Justiça. "A pessoa pode procurar um advogado ou a Defensoria Pública para ter o uso do nome social garantido nos documentos onde ela é identificada publicamente", aponta Othoniel Pinheiro, acrescentando, porém, que é preciso esperar uma decisão do juiz.
Não foi preciso que Arthur passasse por isso. Na escola, o processo foi tranquilo. "Decidi isso no ano passado e no início desse ano mudei nas minhas redes sociais e no colégio. Foi tranquilo. A única complicação foi no começo, porque todo mundo já me conhecia pelo outro nome [Jéssica, o de batismo]. Mas hoje em dia está bem natural", lembra.
Em casa as adaptações também estão acontecendo. "Só quem sabe por mim são meus pais e eles aceitaram bem. Com o resto da família não tenho muito contato e também não fiz tanta questão de sentar e conversar, mas eles sabem. Meus pais entendem e estão se acostumando, porque está recente. Acho que com o tratamento, quando verem que eu realmente mudei, eles vão acostumar. É questão de tempo".
O rapaz, que usa o nome social em todos os locais onde vai, já procurou um médico especializado e o tratamento hormonal deve ser iniciado no fim do próximo mês de agosto. Também pretende remover as mamas, mas não quer fazer a mudança de sexo do feminino para o masculino, uma cirurgia que ainda não teve muitos avanços e segue em caráter experimental.
Apesar da cidade pequena, Arthur conta que não sentiu estranhamento em Olho D'água. "Nunca ouvi crítica. Todo mundo me conhece desde que eu era pequena, mas nunca senti preconceito. Pelo menos não diretamente", ressalta. "Só é complicado com quem te conhece há muito tempo, porque diz que não vai acostumar, coloca dificuldade. Mas me sinto bem mais confortável agora. É ótimo ter esse direito", completa.

A diretora-adjunta da Escola Estadual Ângelo de Abreu, Maria José Gomes, mais conhecida como Bia, fala que o processo para que o jovem utilizasse o nome social foi calmo. "Sabemos que existe uma lei que dá direito ao aluno de fazer isso. Tendo conhecimento dessa lei, ele procurou a direção para que pudéssemos fazer valer esse direito. Ele se sente respeitado, inclusive pelos colegas, que entenderam e aceitaram".
O acolhimento na comunidade escolar, diz ela, foi ótimo e as mudanças em Arthur, surpreendentes. "Ele está passando por um processo de transformação, porque antes era muito tímido, retraído, e acredito que isso era consequência do fato de não ter se assumido", destaca. "Hoje ele se transformou. Mal falava e está comunicativo, com desenvoltura. Como professora, digo que ele precisava apenas descobrir e ser aceito".
Como as matrículas e demais documentações ainda precisam ser feitas de acordo com o registro da Certidão de Nascimento, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) ainda não tem um levantamento de quantos estudantes, em toda a rede de ensino, passaram a utilizar o nome social. Apenas em cada unidade é possível saber onde eles estão. Já no Centro Universitário Tiradentes, em Maceió, dois alunos se utilizam do dispositivo. Nenhum deles gosta de se identificar ou dar entrevistas.
O reitor da universidade, Dario Arcanjo, acredita que a medida foi positiva. "Desde o ano passado regulamentamos para que todos os que tivessem interesse, para que tivessem essa autonomia. Basta se dirigir ao nosso departamento de assuntos acadêmicos e solicitar. Damos esse direito a todos os alunos, que eles sejam denominados pelo nome correspondente à sua identidade, à sua personalidade", expõe.
O advogado Othoniel Pinheiro lembra a importância da iniciativa. "O nome social representa a própria liberdade. Durante muito tempo vivenciamos, na história do Brasil, o sufocamento das autonomias e da identidade. Agora, isso representa uma faceta dessa identidade e da autonomia do indivíduo e a autonomia é um dos preceitos básicos da pessoa humana".
No terceiro ano da Educação para Jovens e Adultos e pretendendo seguir a carreira de fotógrafo, Arthur conta que agora se sente bem consigo mesmo. "Sempre soube que não me sentia bem no meu corpo, mas não tinha conhecimento que existiam tratamento e essas coisas. A partir do momento em que eu soube, vi que era isso que queria fazer", aponta o jovem de Olho D'Água das Flores.

*Uma cartilha sobre o uso do nome social, feita pelo Governo Federal, pode ser encontrada no link http://www.assistenciasocial.al.gov.br/acervo/protecao-social-especial-media-complexidade/creas-paefi/Cartilha%20Nome%20Social%20LGBT.pdf/view?searchterm.