Estima-se que, em média, 19 milhões de litros de sangue são desperdiçados anualmente, em todo o Brasil, por conta da Portaria 158, de 2016, que reafirma a impossibilidade de gays, exclusivamente do sexo masculino, doarem sangue. Este quesito existe no regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos desde a década de 80 - época em que o vírus da Aids foi identificado e associado apenas a uma "doença dos gays". De lá pra cá, os homens homossexuais são impedidos de exercer o ato solidário e de cidadania que é doar sangue e contribuir com a saúde coletiva.
A estimativa de desperdício sanguíneo, apesar de ser alarmante, é um dado desatualizado e deve ser muito superior ao indicado. Trata-se de um levantamento feito nos anos 90 pela ONU, que indicava que 10% da população mundial masculina era gay, no entanto, duas décadas se passaram e as manifestações de liberdade se intensificaram, mudando esse cenário.
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Nos dias atuais, a determinação se mostra contraditória, de acordo com dados apresentados pelo próprio Ministério da Saúde, que revelam que no período de 10 anos, durante os anos de 2006 a 2016, a manifestação da Aids em héteros foi maior do que em homossexuais. De acordo com os dados apresentados àGazetaweb, atualmente 47,8% dos casos notificados do vírus afeta a população hétero, enquanto os homossexuais e bissexuais representaram 35,6% em 2006 e passou para 47,3% em 2016. O restante diz respeito a margem de erro.

Portaria 158
Antes da reformulação da decisão do Ministério da Saúde e da Anvisa, como já citado acima, desde a década de 80 os gays do sexo masculino eram absolutamente proibidos de doar sangue, contudo, a Portaria 158, de 2016, veio para reformular a proibição, tornado-a uma impossibilidade temporária. Agora, está inapto de doar sangue todo homem que tenha praticado sexo com outro homem no período de 12 meses.
Apesar da reformulação, a decisão ainda gera muita repercussão, pois diversos grupos defensores da saúde e do movimento LGBTQ+ alegam contradições e discordam que uma pessoa gay tenha que ficar um ano sem fazer sexo para praticar um ato de cidadania.
"Em nenhum momento a portaria fala da possibilidade de doação entre quem pratica um sexo seguro, por intermédio do uso do preservativo, e sim restringe, apenas, pela orientação sexual do indivíduo. Uma forma de a portaria ser derrubada é dotando-a de inconstitucionalidade e quem pode fazer essa dotação é o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] ou de uma DPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental]", explica a estudante de direito Alexandra Lima, e uma das autoras de um artigo que discorre a respeito da constitucionalidade da Portaria 158.

Sua parceira de pesquisa, a também estudante de Direito Marianne Azevedo, continuou a explicação: "O ministro Edson Fachin, do STF, é relator de uma ação que pede a revogação da Portaria 158 [das normas que impedem homens homossexuais a doarem sangue], no entanto, a votação, que aconteceria em outubro de 2017, foi suspensa pelo pedido de vista do ministro Gilmar Mendes e não há previsão de a votação ser retomada, inclusive, pode durar anos", disse ela.
Debate da causa em Alagoas
Na última semana, o assunto foi levado à discussão na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), onde aconteceu um debate com a temática "Recusa da vida: a doação de sangue por homossexuais", promovido pelo Coletivo Cintilante, formado por alunos do curso de Ciências Sociais da universidade, que se preocupam e defendem pautas emergenciais do direito social.
O debate uniu as estudantes de Direito já citadas, a bacharela em Serviço Social e pós-graduanda em Saúde Pública, a Flávia Reis, que tratou sobre os determinantes e condicionantes da saúde da população LGBT e a importância da política nacional integral LGBTQ+ na grade curricular de saúde.
Flávia relatou que há uma grande deficiência no debate de inclusão da política integral LGBTQ+ na grade curricular dos cursos da saúde, e que tal deficiência repercute diretamente na prestação dos serviços a este grupo. "A ausência de discussão sobre o tema acontece justamente nas academias, nas graduações e pós. Por isso, existem muitos profissionais que ainda desconhecem que só os homens homossexuais não podem doar. Mais um fator que indica a necessidade de discutir a política integral LGBT principalmente no processo de educação em saúde", afirmou.

E Flávia reforçou o que será apontado mais à frente nesta matéria. "Os estigmas e os preconceitos pessoais são levados ao âmbito profissional e os trabalhadores da saúde muitas vezes acabam constrangendo o doador. Quanto à impossibilidade de doação, não há justificativa biológica. O sangue de um homossexual não é diferente do de um heterossexual, então, mais uma vez o estado dita a maneira 'certa' de amar", concluiu Flávia.
De acordo com o Grupo Gay de Alagoas (GGAL), o impedimento dá brecha para a perpetuação do preconceito e, até, para a burlagem do sistema. "Conheço muitos gays que para cumprir com este papel social acabam negando a sua orientação social, e isso é muito triste. A provocação que faço é a seguinte: se a própria Organização Mundial de Saúde reconheceu, ainda na década de 80, que a homossexualidade não é doença, que não existe população de risco e sim pessoa de risco [quanto à contaminação de DST], porque existe esta determinação de impedimento?", criticou Nildo Correia, presidente do GGAL.
"Tenho uma amiga que sofreu um acidente e precisou de uma transfusão de sangue, então, eu já sabia desta restrição e mesmo assim eu fui doar o sangue, na primeira tentativa eu não passei na entrevista, para mim foi dito que uma das taxas estava irregular, porém, ainda no mesmo dia, fui ao Hemoal e aí passei novamente pelo mesmo procedimento e consegui doar. A diferença foi que eu tive que me comportar diferente, sem reproduzir a questão do estereótipo, mas acredito que foi isso que possibilitou a doação. Mas hoje em dia não faço mais isso", contou o estudante de Psicologia Alison Santos, de 22 anos, que precisou negar a sua orientação sexual para ajudar a salvar a vida de sua amiga.

O também universitário, estudante de Ciências Sociais, Cezar Augusto, de 24 anos, contou que já havia realizado duas transfusões de sangue no setor privado e não encontrou nenhuma triagem quanto à sua orientação sexual nesse dois casos, porém, ao tentar doar no Hemoal, uma unidade pública, o questionário foi aplicado e ele ficou impossibilitado de prestar o serviço humanitário. Até esse momento, ele não conhecia a determinação proíbe a doação por homossexuais do sexo masculino. "Meu principal incômodo é que não houve nenhum preparo na abordagem, a mulher que me atendeu foi completamente arbitrária quando me abordou, não houve nenhum preparo, a falta de conhecimento do profissional acaba impedindo um atendimento mais humanizado", lembrou o estudante.
De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), no ato da doação é obrigatória a realização dos exames laboratoriais de Sífilis, Hepatites B e C, AIDS e HTLV I/II para detecção das Infecções Sexualmente Transmissíveis. O que evidencia possíveis doenças. Ainda de acordo com a secretaria gays podem doar órgãos, desde que se enquadrem nos pré-requisitos estabelecidos pelo Ministério da Saúde e que os exames sorológicos não apresentem resultados positivos para doenças infectocontagiosas.
"Não há motivo para este preconceito e discriminação, pois tanto um gay quanto um hétero vai passar pelo Teste Nati [exame sorológico], que vai identificar problema ou não no sangue de qualquer pessoa, então esta proibição é um estigma que foi levado do social para o âmbito jurídico", ressaltou a estudante de direito Alexandra Lima.