A viabilidade da aplicação da figura do juiz de garantias vêm sendo questionada por todo o território nacional, e no Estado de Alagoas, não é diferente. Apesar de o presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL), Tutmés Airan, ser um entusiasta da inovação, especialistas divergem quanto à capacidade do Judiciário estadual de suprir a demanda.
A medida cria uma figura jurídica nova, o juiz de garantias, que será dedicado exclusivamente à etapa de investigação do caso. Após a conclusão do inquérito, a competência passaria para o juiz de instrução (ou julgamento), que ouvirá testemunhas, vítimas e o réu, e julgará o caso. Defensores da medida, que incluem o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, dizem que ela trará um veredito mais isento, já que o juiz que atua na investigação estaria mais inclinado a julgar o réu culpado.
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Recentemente, uma liminar do ministro Dias Toffoli adiou para seis meses o prazo para que os tribunais cumpram a nova lei. Entidades da magistratura e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vinham criticando o prazo original, que ia até o dia 23. O caso ainda vai passar pelo plenário, em data ainda não marcada. Não foi definido na legislação o que os tribunais devem fazer para cumprir a medida, e o CNJ delibera a respeito.
Uma dessas ideias se trata da criação de uma vara única que seja responsável pela investigação de todos os processos do estado, o que resolveria um problema apontado por críticos e que está presente em Alagoas: o alto número de comarcas com um único magistrado. Existe um temor de que o juiz de garantia gere maior lentidão nos processos, mesmo com a fase de investigação sendo mais breve.
Dados do CNJ mostram que a Justiça estadual de Alagoas demora, em média, 4 anos e meio para julgar um processo em primeira instância, sendo uma das Cortes mais lentas do país. Especialistas consultados pelaGazetaquestionam a capacidade do estado de gerir todas as demandas com a nova figura. O Corregedor do TJ/AL, Fernando Tourinho, expressou, no fim do ano passado, temor de um onda de prescrições de casos devido à lentidão dos processos, agora instruídos por dois juízes.
Levantamento feito pela reportagem, com base em dados disponíveis no site do Tribunal de Justiça de Alagoas, mostram um número elevado de comarcas com um único juiz (22 comarcas, 40% do total) ou com o assento vago (21 comarcas, 21,18% do total). Somente 12 das 55 comarcas do estado possuem mais de um juiz, sendo o número correspondente a cerca de 22% do total.
Com a implementação do dispositivo, os juízes teriam de se revezar no julgamento de casos, criando uma sobrecarga ainda maior nos magistrados. O Estado de Alagoas tem uma dianteira nessa matéria em comparação aos demais, já que conta com os seus processos 100% digitalizados e a maior parte do acervo de processos anteriores já online. Isso permite que os juízes trabalhem em casos de outras comarcas sem se deslocarem em grandes distâncias, o que poupa tempo e recursos.
Contudo, ainda será um esforço grande evitar a prescrição de casos em um estado que leva tanto tempo na primeira instância. Raimundo Palmeira, advogado criminal, disse, em entrevista à Gazeta, que a situação é preocupante. "Só se contratar mais juízes", salientou. No último levantamento do "Justiça em Números", do próprio TJ/AL, 89,7% do seu orçamento de mais de meio bilhão era dedicado ao pagamento de pessoal. Os últimos dados disponibilizados pelo CNJ, de 2017, mostram que Alagoas gasta, em média, R$ 25 mil por mês, por magistrado, segundo menor do Brasil, que conta com a média de R$ 45 mil.
O mesmo levantamento atribui uma taxa de congestionamento entre 70% e 80% no primeiro grau, o que pode ser agravado pelo juiz de garantias. A Associação dos Magistrados de Alagoas (Almagis) afirmou à reportagem, por meio de nota, que é contra a medida e aguarda julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada por entidades de classe no STF.
"Entendemos que essa modificação legislativa, inserida no contexto da Lei denominada ?anticrime?, trará alguns prejuízos para a sociedade. (...) Quais os prejuízos? Morosidade nos julgamentos, pois pode haver burocracia, e o receio da prescrição de processos", disse o presidente da Almagis, juiz Sóstenes Andrade.
'Vara das Garantias'

Conforme noticiado pela Gazeta, uma das ideias do presidente do TJ/AL, Tutmés Airan, é transformar a 17ª Vara Criminal da Capital, dedicada a casos de crime organizado e que obteve repercussão nacional, em uma "Vara das Garantias". Atualmente a divisão conta com três magistrados, que ele pretende ampliar para cinco. "Não é o suficiente", avaliou o advogado Raimundo Palmeira, que se disse à favor do juiz de garantias, sobre o número.
A 17ª Vara foi criada em meados dos anos 2000 para combater o crime organizado em Alagoas, que é assombrada por memórias do crime de mando. Ela contava com inovações jurídicas que foram recebidas de forma mista, como a indicação dos juízes de forma política pelo presidente do tribunal. Os juízes sempre divulgavam pareceres em consenso e os trâmites eram sigilosos.
Parte do dispositivo foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas a maior controvérsia, a criação do conceito de "organização criminosa (ORCRIM)" por uma lei estadual, foi ignorada. Somente em 2013, a União regulou o que seria uma ORCRIM, por meio da lei 12.850/13.
Uma reunião, inclusive, foi realizada nessa sexta-feira (17) para discutir a elaboração de um projeto de lei a ser enviado para a Assembleia Legislativa (ALE) e modificar a função da vara. Ela também seria transferida para o Fórum da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). A reunião contou com a presença de membros do TJ/AL e da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Alagoas (OAB/AL).
A ideia de se levar todos os casos do estado para uma única vara localizada na capital também gera certas dúvidas constitucionais, como o respeito à figura do Juiz Natural, que obriga o Judiciário a criar normas específicas de competência no julgamento.
A assessoria do Tribunal de Justiça de Alagoas não respondeu, até o fechamento desta edição, aos questionamentos da reportagem sobre a aplicabilidade da figura no estado ou a constitucionalidade de uma vara única de garantias.